domingo, 27 de setembro de 2009

Bodas de Diamante

Uma data memorável

Sidney Heringer Perru Filho e Gevany Nagem Perru
Sessenta anos de casados

Meus pais, Sidney e Gevany, casaram-se em 1949, no município mineiro de Manhumirim. Em 1962, foram morar em Santa Cruz-RJ. Em 8 de janeiro de 2008 completaram 60 anos de casamento.


Este é o link, veja o filme no You Tube
http://www.youtube.com/watch?v=H9eiY05a9KY

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O Viuvinho

p
Vida de "carona"
Vazei. Já que niniguém me ofereceu carona, decidi enfrentar a noite escura e o vento um pouquinho mais fresco do que me agrada.
Caroneiro tem algo de Cinderela - se passar da meia-noite, vira abóbora. Não pode contar nem com os táxis - principalmente em noites frias e chuvosas.
.
A carona ganhou o nome elegante e merecido de transporte solidário. Ninguém é tão rico e independente que nunca precise de uma carona. Além de ser a rotina dos mochileiros, a carona livra motoristas em apuros mecânicos ou etílicos, facilita a participação em eventos, diminui a quantidade de veículos em circulação e alivia os estacionamentos.
Pegar ou oferecer carona tem um código de condutas não escrito mas bastante conhecido e cobrado. Afinal, caroneiro ou motorista podem esconder alguma intenção maldosa. Carona segura é aquela praticada entre amigos e conhecidos.
Caroneira de longa data, aprendi que se a casa de um homem é seu castelo, o carro é sua extensão e o carona é uma visita. As famílias aproveitam o percurso para colocar assuntos em dia e para escutar suas músicas preferidas sem preocupar-se com vizinhos. O caroneiro precisa se fazer de surdo-mudo para não ser intrometid ou abusado. Pode estar congelando, mas não pede para levantar o vidro. Algumas vezes, faz papel de confessor, advogado, juiz ou médico. Se não consegue sair pela tangente termina entrando em briga de marido e mulher, o que pode acabar com o seu conforto e colocar em risco a própria instituição pública da carona.
Caroneiro que se preze não fica até o final da festa, esperando sobrar para o último conviva e conquistar o benefício na base do constrangimento. A menos que combine antes, esse truque pode falhar. Pode acontecer que o último carro só tenha uma vaga e o dono tenha levado a sogra.
Caroneiro que se preze não entra no carro alheio com trajes e atitudes provocantes. E, se o outro tiver tais costumes, o caroneiro precisa lembrar que é visita, e o outro está como em casa, tem direitos de anfitrião. Na pior das hipóteses, pede para parar em frente à farmácia porque lembrou que precisa comprar um antiácido. Dessa forma, dispensa-se de constrangimentos.
Ah, se a carona implicar em certa distância ou se for rotina diária, não é feio oferecer-se para dividir o custo da gasolina. Um detalhe: buscar e levar em casa, não é carona. Isso é privilégio para os íntimos. Carona é deixar o mais próximo possível, sem onerar as pessoas de boa vontade e sem transformá-las em nosso motorista particular.
Mas, como dizia, tinha decidido ir de van para casa, apesar da escuridão e do ventro frio. Dessa vez, porém, a Vida reservava-me uma das suas surpresas. Uma voz infantil chamou meu nome e acrescentou: - Vem com a gente! Claro que aceitei, de bom grado.
A Menina Hiperativa

Escostei-me à coluna, esperando que todos se despedissem uns dos outros. Olhava o céu, observando se tinha estrela ou se vinha um ar de chuva. Vida de carona tem dessas preocupações. Senti um rijo beliscão na pele do cotovelo, assustei-me e me vi cercada de meninas. Uma delas começou a chamar atenção de todos para a minha modesta pessoa. - "Ela tem o cotovelo duro. Papai, papai, ela tem o cotovelo duro. Que engraçado. O meu é molinho. Por que, papai"? E começou a beliscar o cotovelo das outras, todos molinhos. O pai deu uma rápida olhada e continuou passando enquanto explicava: - "Ela trabalhou muito, o cotovelo ficou duro".
Admiro respostas sintéticas, precisas e concisas. Realmente, trabalhei muito e ainda trabalho. Nunca tinha observado meu cotovelo em comparação com os demais cotovelos. Eu ignorava esse fato, de que trabalhar deixa o cotovelo duro. Pensava que cotovelo fosse duro, de maneira geral.

A menina que me ofereceu carona e implicou com meu cotovelo é uma daquelas que minha mãe chama de "espoleta" e outras vezes de "imperativa" - o mesmo que "hiperativa". De caminho, conversa vai, conversa vem, a irmã mais velha aproveitou para me refrescar a memória a respeito de uns aparelhinhos de mp3, que eu lhes havia prometido em caronas anteriores, que já foram para o lixo de há muito, e pensava que haviam esquecido. Promessa é dívida e essa foi paga com juros e correção monetária. Como a mais novinha já tinha um mp4, eu, no lugar de dois mp3 usados, ofereci-lhes um mp4 zerado, na embalagem, que guardava de reserva para alguma emergência. Claro que aceitaram, de pronto.
Subimos as três para buscá-lo e, não mais que de repente, reparei que a pequena estava brincando com meu celular novinho. Confesso que me doeu a pleura. Fiz de conta que não vi, exercitei a fé e fiquei torcendo para que o delicado aparelho saísse inteiro da aventura. Depois de alguns minutos, dirigiu-se a mim e o devolveu, com uma informação e um arzinho sério: - Coloquei no seu celular os telefones do meu pai, o celular e o fixo. Quando quiser, pode ligar para ele.
Se foi por meus lindos óculos ou se foi pelo mp4 novo, se foi pelo meu jeito delicado e respeitoso de lidar com suas estrepolias - não tentei entender o motivo de tamanha generosidade e simpatia - parecia estar me dando o pai numa bandeja.
Ai, meu Topolino!
Em poucas palavras, a menina hiperativa e eu estávamos nos entendendo às mil. Muito naturalmente, deixei-a conhecer meu topolino. Mas, num instante, arrependi-me. A garota jogava-se contra o encosto do sofá, rindo em cócegas, esperneando e pinoteando, soltando gritinhos nervosos e divertidos com o animalzinho solto embaixo da blusa. Fez-me imaginar uma versão do King Kong com carrapatos, e a heroína em apuros ainda maiores.

Resgatado e colocado de volta à pequena gaiola, o bichinho, arrastando uma perninha, deixou-se quedar fora do barrilzinho de plástico que lhe serve de toca. Passou a noite ao relento, ignorando a rodinha que tanto o diverte, desprezando a água e a comida. Cheguei a pensar em lesão de coluna ou fratura de membros. Foi só um susto. Como de costume, dormiu o dia inteiro e voltou ao normal. Ainda me parece impossível que tenha saído ileso da experiência. Bem que meu filho tinha avisado: - "Se a garota vai tratar dele, pode dar. Mas se for pra matar, deixa que eu continuo cuidando". É... A Vida avisa.

A Enxadrista

Em boa hora, lembrei às meninas de que o pai as esperava no carro. A irmã mais velha conservava o sorriso da Gioconda, não parecia divertir-se. Tinha a atitude complacente de quem sabe o final dos acontecimentos, um tanto madura para a sua pouca idade, um ar atento de quem reconhece uma oportunidade. Afinal das contas, do alto dos seus doze anos, é a responsável pela casa, na ausência do pai.

Soberanamente, começou a tossir forte, sem nenhuma preocupação com a nossa presença. Não aceitou quando a pequena a repreendeu, recomendando que pelo menos tapasse a boca com a mão. Determinou que cuidasse, cada uma, da própria vida. Experimentei um gosto de derrota, lamentei não ter uma pastilha na bolsa para oferecer-lhe, computei um a zero para ela e joguei ao vento o manual de ética do carona. Crianças 1 x 0 Adultos.

O pai permanecia impassível, atento ao volante. Tentei amenizar a situação falando de coisas agradáveis. - "E se for para dividir uma caixa de chocolate? É cada uma com a sua vida"? - "É a mesma coisa", respondeu a mocinha. "Eu ganhei amigolate e não dei nada para ela". Isso teve o peso de uma confissão pública. O pai, ao volante, franziu o cenho e a pequena protestou: - "Quando eu tenho, te dou, tá"? A outra respondeu, enfatizando com gestos: - "E quando eu tenho eu não te dou. Sua vida é sua vida. Minha vida é minha vida". Crianças 2 x 0 Adultos.

O pai olhou-me de soslaio, como a dizer: "Eu não disse? É desse jeito"... De fato, minutos antes ele tinha me confidenciado essa dificuldade da filha mais velha em compartilhar com a irmã. Como eu acredito que "é dando que se recebe", tomei partido da pequena. Para evitar contraditório fui logo invocando a autoridade bíblica. "Deus abençoa quem dá com alegria". Os outros festejaram - "Viuuu? Viuuu"? A mocinha fez bico. Um ponto para nós. Crianças 2 x 1 Adultos.
Toda competição envolve risco - disso eu já saia. Mas, já tinha caído no laço, não sei sair dessas situações. Sabe aquela pessoa que dá um boi para não entrar numa polêmica e uma boiada para não sair dela? Sou eu. A mocinha voltou a tossir, ostensivamente. A pequena tentou argumentar que isso afetava a vida dos demais dentro do carro, mas foi novamente rechaçada - que cuidasse da própria vida. Crianças 3 x 1 Adultos.

Nesse ponto, o pai quebrou seu silêncio e decretou, em alto e bom som: - "Você está errada". Três a dois. Ele pagaria caro por essas três palavras, mas o ponto foi computado. Crianças 3 x 2 Adultos.

Percebendo a crise de autoridade dentro da pequena família, eu, mera carona, mesmo hesitante, optei por meter novamente minha colher de pau e jogar a questão para outro personagem externo e inquestionável: - "O Ministério da Saúde adverte. Quando tossir, cubra a boca, de preferência com um papel descartável". Empate, Crianças 3 x 3 Adultos.

O pai aplaudiu: - "Viu, só? Viu só"? A mais nova festejou: - "Viiuu? Viiuu"? Mas, surpreendeu um olhar enviesado da irmã e voltou ao mp4, com um ar preocupado. No ensejo, pediu vinte reais, sendo dez para cada uma. Esse pequeno financiamento poderia desviar as consequências do detestável empate e restabelecer a confiança entre as duas, sem dúvida, abalada pelas derrotas sucessivas dessa noite. Mas, não funcionou porque o pai alegou cansaço e prometeu que sacaria o dinheiro na manhã seguinte. Com isso, outra batalha teve início - agora, amanhã, agora, amanhã - quase uma cena de sequestro-relâmpago em porta de banco, onde o pai era o refém.

Percebi, no centro da ação, uma presença antiga, autoritária e invisível querendo se impor. Mais uma vez, não pude conter-me. - "A gente gosta de mandar, não é? O meu pai não deixa ninguém mandar nele. Ele é bravo que só". Contei até dez, ninguém se manifestou, ficou valendo. Portanto, Crianças 3 x 4 Adultos.

Fez-se um minuto de estratégico silêncio, que eu confundi com rendição. Pareciam entretidas, carinhas de anjo, cada uma com seu joguinho eletrônico de mp4. Mas, não perdiam o fio da conversa, a mente trabalhando, buscando saída ou, melhor, revanche.
Para não tripudiar, tentei novamente trazer um assunto agradável. -"Essa pequena se divertiu com o topolino". Acho que fui infeliz na tentativa. A mocinha levantou as sobrancelhas sem me olhar e murmurou, com a voz sentida: - "O papai arranca o nosso couro. Ele arranca o nosso couro". Vitória das crianças por nocaute. Mas, que coisa, não? Será que não consigo entabular uma conversa trivial? Tudo é motivo - gripe, pet, chocolate, dinheiro - todo assunto acaba em estresse.
Bom, eu só estava tentando arranjar um assunto para quebrar o gelo. Essa atitude é bem compreensível por parte de um carona. Não ajudaria em nada, contar ao pai das meninas os meus sustos com o celular e com o topolino nem me aproveitaria da ingênua atitude delas em me dar os números de telefone dele. Não entendi a reação sentida e medrosa das meninas, com medo de apanhar uma surra. Senti-me em xeque, sem saber o que pensar. O pai distendeu as sobrancelhas por um instante, fixou os olhos na pista à frente e também guardou silêncio.
Não posso acreditar, mas não tenho como desmentir a cruel afirmação de que ele arranca o couro das filhas. Se ele soubesse meus pensamentos, como conheço, de longa data, a boa fama que o precede. Todos os comentários sobre ele descrevem uma pessoa que não parece real. Além de bonito, jovem, elegante e próspero, pai extremoso, marido perfeito e viúvo compungido, ele canta muito bem, com uma voz doce e rasgada. Tenho visto como responde às filhas, sempre de maneira cortês e civilizada. Sempre vi como atendia à esposa, como um cavalheiro.
Seria tolice dizer-lhe essas coisas. Primeiro porque, em volta dele deve ferver de bajuladores e pretendentes. Segundo, em sã consciência, eu não diria nem faria nada que o constrangesse nem que aborrecesse suas filhas e, menos ainda, que incitasse nossos amigos e conhecidos em comum. Certamente, eu pagaria caro se tentasse arranhar figura tão cara e estimada entre os que o conhecem. No mínimo, cairia no ostracismo e teria que mudar de ambiente.
Mas, o verdadeiro motivo que me orienta a guardar a porta da boca e do coração é a alegria, muito grande, de privar dessa recente - como direi? Não posso chamar de "amizade" algo que não passa de caronas ocasionais, em família, porque frequentamos alguns locais em comum. Cessei, definitivamente, as tentativas de diálogo. Resisti à tentação de externar uns conselhinhos, justificar a todos, lembrar-lhes que a situação está difícil para adultos e crianças.
Acendeu uma luz amarela, quando lembrei-me de um seu comentário sobre viver em apartamento. -"Às vezes, a gente precisa dar uns gritos nas meninas e tem que ficar se controlando". Será isso o que elas chamam de "arrancar o couro"? Será uma "força de expressão"? Ou, será por isso que me deram os números de telefones do pai? Quererão casá-lo às pressas, para terem mais segurança dentro de casa, apostando na possibilidade de que um adulto policie o outro, de ter quem as defenda, alguém que lhes deva esse favor e não se atreva a contradizê-las?

Se ele grita com elas do mesmo modo bonito como rasga a voz ao cantar, ai, poupe-me. E se ele é tão bravo como elas fazem parecer, isso é campo minado, é canoa furada. Ele pode querer reprimir essas manifestações de desagrado perante uma testemunha estranha à família. Não aceitaria de bom humor que lhe queimem o filme dessa forma, na sua presença. Acuado, poderia virar-se contra mim e tentar prejudicar-me de alguma forma, até inconscientemente. Eu também prezo meu nome e minha imagem pública.
Para bem de todos e preservação da cultura da carona, tento tirar o homem da fogueira, poupar as meninas e sair ilesa. Elas jogam pesado e o pai se abaixa, deixando passar todos os torpedos. Tem problemas demais. Trabalha o dia todo, administra o lar, cuida das filhas. Enfrenta momentâneas dificuldades financeiras, com os bens bloqueados em razão do inventário. Ainda ajunta os cacos dos sonhos perdidos e dos projetos gorados. Para completar, geme a dor de uma costela, partida num bate-bola com amigos. Lamenta que não pode nem desestressar um pouco sem se machucar. Esse caso comove-me e me faz quebrar outra regra do meu manual do carona - jamais ter pena de homem bonito.
Acabo de meter o bedelho nas questões dessa família monoparental, mas não posso me comprometer demais. A acusação de ser um pai violento deixou-me em xeque. Ele não reage, nem ficaria bonita uma reação impensada. Prefere deixar passar por verdade e acertar em casa. Afinal, quem sou eu para merecer explicações sobre o que se passa em fámília? Errada estaria, se deixasse vazar essa história. Difícil conciliar discrição com cumplicidade e descaso. Mas, se as crianças se sentem agredidas, já tem idade e são bem espertas para denunciar. Nenhum desses pensamentos tem poder de me parar.
Estou vestida de justiceiro e alguém, neste carro, está sendo muito injustiçado - Deus sabe quem. Em algum lugar escondido da minha mente, sempre tem um trunfo. Não posso explicar esse mistério, mas na hora certa, surge a carta coringa. Dessa vez, não seria diferente. Eu não iria desse jeito para casa, não, mesmo!
Num lampejo, invoquei, pela segunda vez, meu rabugento pai. Chega a ser covardia, mas foi por uma boa causa.

- "Seu pai é bravo assim? Vocês precisavam conhecer o meu. Ele é mais bravo do que um tetéu".

Pela primeira vez, houve houve sintonia dos pensamentos. O pai engoliu em seco e a mais velha indagou:

- "Ele é mais bravo do que um tetéu? Puxa"!!!
E a pequena fez eco:
- "Puxa"!!!

A comparação sugeria algo horrível além da imaginação e o silêncio encontrou lugar dentro do carro. Consolidada a vitória, cinco a três no placar. Fim da viagem, beijinho, beijinho, tchau, tchau, cada qual para sua casa. Em todos os rostos, o medo. O que pode ser mais bravo do que um tetéu? Como um ser humano consegue? Xeque mate.

Ufa!!! Direto para o computador, pesquisar na Net, o que significa ser mais bravo do que um tetéu, expressão que eu ouvi por aí e ando repetindo, sem saber o que significa e que essas meninas não vão sossegar enquanto não descobrirem ou vierem me perguntar. Tetéu é um passarinho tão bravo que seu canto lembra o latido de um cachorro. Sua gritaria pode estourar uma boiada e afastar os predadores. Ele faz mais barulho do que estrago.

Um passarinho chamado Tetéu

Tetéu é um passarinho tão valente que substitui cão de guarda em propriedades extensas, e no Nordeste leva o nome de "espanta boiada". Seu canto, ou grito, reproduz, sem tirar nem por, o barulho produzido por aqueles cachorrinhos pequenininhos que tem um latido fininho e uns dentinhos afiadinhos. Pensa num desses, dotado de asas - é o próprio! Ele é o terror dos boiadeiros, porque basta um grito de tetéu para estourar a manada. Ele é tão nervoso que não dorme nem deixa ninguém dormir, descansa apoiado em um pé só, com o outro pé apoiado no joelho. Quando esse pé escorrega porque o sono vem chegando, ele se apruma e dá um grito que lembra a expressão "quero-quero", o outro nome pelo qual é conhecido. Só não é mais valente por falta de espaço.

Agora, já sei o que faz um tetéu parecer tão mau. O nome engana, ele não é masculino de tetéia.

Graças Sem Graça

Naquela noite eu não pude dormir. Eu ria alto e não entendia por que. Sei o que seja passar a noite chorando, mas passar a noite rindo foi a primeira vez. Ri a noite toda e me perguntava: Por que estou rindo? Qual é a graça? Tetéu não é masculino de tetéia. Tetéu é intragável e insuportável. Tetéu é um bichinho de asas, capaz de assustar criança só de falar nele e que bota carcará pra voar. Tetéu estoura boiada. Filhote de tetéu não é nenhuma tetéia... kakakaka. Kekekeke. Quero-Quero, Quero-Quero. Eu quero porque eu quero. Quero porque quero. E quem quer um quero-quero? Eu não quero.
Tenho um senso próprio de humor. Raramente, alguma anedota faz-me rir. De fato, o que chamam de humor parece-me um condenável cortejo de preconceitos e agressões à diversidade da fauna humana, um verdadeiro caso de polícia. Não entendo quem ri de piada de português, de preto, de loura, de homossexual, de gordo, de magro, de louco, de traído, de leproso. O apresentador Faustão costuma expressar o mesmo dilema - gosta das pessoas, mas precisa das anedotas como ganha-pão. Por mim, está dispensado. Mas, o humor existe.
Existe algo que faz as pessoas rirem e que parece ter uma lógica própria. Dizem que o que dá pra rir dá pra chorar, que o horror demais vira humor e que muito riso é sinal de pouco siso.
As lições da Vida estão por toda parte e alegra-me observá-las. Deslindar a delicada rede da comunicação doméstica e revelar o medo e a astúcia por trás de atitudes inocentes faz-me feliz como se ganhasse um campeonato internacional de xadrez.

Pela manhã, caminhava sem pressa por uma calçada em plena via central do meu bairro. Meditava nos mistérios do riso, na eficiência de algumas crianças em controlar os pais e preservar-se umas das outras e pensava em criaturas valentes como o tetéu, que não se olha no espelho, ignora a própria pequenez e passa a vida afrontando o mundo. Sorria ao vento, quando ouvi uma senhora idosa a gargalhar com gosto. Outras pessoas começaram a rir também e descobri o que tanto as divertia. Tinha que ser uma tragédia - no caso, a luta pela sobrevivência das espécies na cadeia alimentar.
Um gavião fizera ninho na copa da árvore em frente à parada de ônibus e tratava de garantir seu almoço, mas vinha levando diversos olés do pardal. Entre as risadas, a senhora passou a descrever os apuros por que passaria o predador, se tentasse pegar um quero-quero. Dessa forma, pude concluir minha pesquisa sobre esse passarinho tão peculiar.

O tetéu não serve como alimento porque sua carne é dura, não cozinha nem pega sal. Como algumas corujas, ele faz ninho no solo e persegue passantes incautos. Tanto como seus vizinhos, seus predadores não levam vida fácil. Ele não suporta companhia, nem se dá ao trabalho de saber quem é amigo ou inimigo. Só de perceber presença estranha, dispara seu grasnar desesperado e apavorante, atraindo outros de mesma espécie. O bando acomete contra o intruso, gritando em uníssono "quero-quero, quero-quero" ou, conforme o ouvido de quem ouve, "tetéu, tetéu" até que bata em retirada. Vencido o perigo, continua a gritaria espantando uns aos outros até que não haja ser vivo que o escute - ou seja, até que haja uma distância razoável uns dos outros.

Certamente, o meu pai vai se orgulhar da comparação e concordar que foi por uma causa justa. É o reconhecimento público do que ele considera suas maiores virtudes, ser valente, positivo, sistemático. Para ele, tolerância vem de tolo e toleirão. Para não ser tolo nem toleirão, pratica a intolerância. Quanto ao meu amigo, falou pouco e pagou caro. Mas, também teve sua lição - se fechar questão doméstica em público, vai ter sua imagem pública arranhada. Talvez ache prudente engaiolar o tetéu interior, regular o tom de voz e as expressões com que pretende comunicar-se com as filhas. Eu também me considero avisada de que o jogo não acabou e não devo abusar da sorte, quando vier a revanche. Prefiro ser amiga desses anjinhos até o último dos meus dias. A prudência me recomenda evitar esse tipo de encontro. Eu ainda não estou preparada.

Pode ser útil prosseguir na pesquisa e descobrir até quando o tetéu suporta os filhotes por perto. De antemão, tenho um palpite. Deixarão o ninho no momento em que aprendam a gritar "quero, quero". Tetéu não suporta grito.
Sobrou para quem está quieta
Passei alguns dias insegura, acerca do meu comportamento de carona intrometida. Logo tive oportunidade de checar as consequências dos meus falares. Tudo bem, todos se mostraram espontâneos e simpáticos, parece que ninguém ficou com raiva. Ufa! Dessa vez, pretendia vigiar a boca e só falar do calor e da chuva, à moda britânica. As meninas, como era de se esperar, ligadas no mp4, pareciam alheias ao mundo. Mas, eu conhecia bem a antena multidirecional - não perde nada em redor.
Alertei-as a ter cuidado ao fazer travessias, achei de dar pitaco no uso excessivo do fone de ouvido e recomendei que não fizessem uso dele na rua. Informei que, pelo mundo todo, pessoas tem sido atropeladas por andarem ouvindo musiquinha e não prestam atenção nos carros.
Eu e minha boca grande! O que parecia uma singela recomendação provocou um impressionante relatório das duas meninas sobre as inúmeras vezes em que escaparam por pouco de serem atropeladas. A mais velha contou sobre o dia em que teve o celular esmagado sob as rodas de um carro. A mais nova ressaltou que isso foi livramento de Deus, porque o carro era pra ter passado em cima dela. Em seguida, contou do dia em que seguia o carro da família pedalando uma bicicleta quando foi jogada para cima de um outro carro. O pai ouvia, perplexo. Por fim, murmurou:
- "Eu não sabia de nada disso".
- " A mamãe sabia" - disseram as meninas, a uma só voz.
- "Eu não deixo" - completou.
- "A mamãe deixava" - responderam.
- "Xiiiiiiiii"... - alertou-me a Voz interior. E tratei de arranjar algum assunto light. Coisa difícil é puxar assunto com criança. Tudo que a gente fala, levanta um tapete e "desabafa" um caso.
- "Eu fiz sessenta mil pontos no joguinho do meu celular" informei. A pequena nem fez "tchum". O pai disse que não joga nada - nem dominó. Ainda me explicou que o jogo informatizado armazena as minhas jogadas e as usa contra mim, por isso é impossível ganhar. Tentei consolar-me da minha ignorância, dizendo algo que fizesse sentido:
- Eu estava desconfiada disso. Mas, pelo menos, consigo fazer um monte de pontos de vez em quando ...
A pequena nem fez "tchum". A mais velha informou que joga xadrez. Eu devia ter suspeitado disso.
Chegamos ao fim da pequena viagem e um canudo de papel rolou da minha bolsa aberta. Era um gráfico relacionando o nível de umidade do ar com a proliferação de doenças respiratórias.
- Ah, olha o que eu te trouxe... Por aqui você vai entender essas crises de bronquite na sua família. São as doenças de apartamento.
Espero que se distraia bastante tentando descobrir - só com um gráfico e um higrômetro - como controlar os vírus, ácaros, fungos e bactérias que ameaçam a saúde e a vida da família. Assim, poderá desviar a atenção de sobre as descobertas dessa noite e não achar espaço para revoltar-se com os quase-atropelamentos que assustaram suas filhinhas nem começar a pensar em quanto foi desinformado. Passou, passou. Agora, resta olhar pra frente porque atrás vem gente.

Os passageiros sumiram!

Nem só de caronas dependem meus finais de semana. A popularização das viagens aéreas em prestações a perder de vista mudaram minha rotina. Já é possível tirar um "feriadão" para visitar meus pais, no Rio de Janeiro.
Prezo-me de chegar ao aeroporto, impreterivelmente, horas antes da partida. Dessa vez, não foi diferente.
Cheguei a tempo de tomar uma sopa quente com torradas. Não resisti ao cheiro do pão de queijo com café expresso. Provi-me de guloseimas e caixinhas de sucos.
Quando faltavam vinte minutos, dirigi-me ao portão de embarque. O saguão estava lotado. Como de hábito, decidi ir ao banheiro para não acontecer de perambular no interior da aeronave. Foi uma idéia boa e má, ao mesmo tempo.
Quando dei com minha imagem refletida no espelho, assustei-me. Os cabelos estavam espetados, carregados de estática. Por isso os seguranças estavam abrindo caminho quando eu passava. Certamente, ocultavam o rosto para rir mais à vontade. De onde saiu essa assombração?
Eu não embarcaria nesse estado, definitivamente. Os objetos de uso pessoal estavam na bagagem. Disparei pelos corredores e escadarias, procurando uma loja de conveniências. O atendente informou que a loja não trabalhava com pentes ou escovas. Na sobreloja encontraria uma farmácia.
Apressadamente, subi as escadas rolantes tropeçando nas pessoas, encontrei a farmácia e comprei uma escovinha com espelho. Passei no banheiro, onde molhei cuidadosamente as mechas e coloquei cada uma no devido lugar.
Na volta, surpreendi-me de encontrar deserto o saguão. Dirigi-me ao segurança do embarque.
- Onde está todo mundo?
-Já foram. Onde a senhora estava?
Embirrei, sapateei, apelei. Nada adiantou. Eu tinha perdido o voo. O homem perguntou diversas vezes onde eu estivera nos últimos vinte minutos. Não pude confessar que tinha ido procurar um pente para comprar e estivera no banheiro, me penteando.
Soube que minha bagagem tinha sido retirada daquele avião e que deveria ir ao balcão, remarcar a passagem. Felizmente, havia vagas no próximo voo, duas horas mais tarde. Restou o inconveniente de telefonar para os familiares, explicando o atraso. Bom, acho pouco provável que aquele segurança leia blogs literários, mas, algum dia, pode ser que ele fique sabendo onde eu estivera enquanto chamavam meu nome no serviço de som.
Clique no link abaixo e ouça o "canto" do Tetéu. :http://www.wikiaves.com.br/som_1288
Admiro pais que respondem adequadamente aos filhos, não se fazem de surdos nem respondem com grosserias.
Ah, admiro pessoas observadoras e participativas - independentemente da idade - porque elas dão cor e movimento ao mundo. Trazem mudanças. Quebram paradigmas. Fazem moda. Fazem acontecer. Possuem energia inesgotável, coragem excessiva, tirocínio mordaz e uma ânsia de viver sem moderação. Admiro pessoas hiperativas, com pilhas a mais. Discordo de médicos, pais e mestres que tratam como doença e os submetem a remédios controlados e drogas psicoativas. Não sei como suportam as pessoas "normais".
O ser humano não é produzido em série, cada qual tem suas maneiras de ser. Hiperativos apreciam esportes radicais e são naturalmente aptos para trabalhos que exijam energia e coragem. No entanto, reconheço que, para o nosso comodismo pode ser uma experiência terrível, "educar" ou conviver com pessoas assim. Talvez, nós é que precisemos de terapia, adaptação e medicação para enfrentar os desafios eacompanhar seu ritmo. Deve existir alguma fórmula, algum tempero oriental que equilibre essa energia. As pessoas costumam confundi-las com "imperativas" e resistem a compartilhar suas idéias e projetos, algumas vezes, estratosféricos e mirabolantes - muitos desses projetos funcionam na prática.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Cultura e Religião

Onde termina a religião e começa a cultura
De médico, poeta e louco, todos temos um pouco. Em mim, o caso é mais grave - além do médico, tenho meu lado louco que também usa jaleco. Antes que abra uma cllínica e comece a receitar descaradamente, preciso dar vazão ao lado poeta. Mas, os tempos modernos me trazem uma facilidade e um senso de responsabilidade cósmica, ao dar forma a sentimentos humanos para além do tempo e dos modismos.
Escrever deixou de ser um vício solitário. As palavras já não se escrevem na areia, que a onda do mar leva, nem no diário, que se alimenta no escondidinho e termina alimentando o fogo. A obra literária se espalha e sobrevive ao seu autor, especialmente em tempos de net, em que até eu, que nunca pensei em publicar, fiz este blog.
Os objetos culturais parecem criados para dar formas aos sentimentos, especialmente, religiosos. Os ditos objetos, especialmente aqueles importados e não traduzidos, são deglutidos pelas massas em busca de diversão, sem a menor noção de que estão louvando e propagando algum deus ou doutrina frontalmente contrária aos princípios que professam domingueiramente ou carregam, pendurados ao peito, em algum pin ou pingente. Melodias bonitas, mesmo na língua natal, adocicam e douram mensagens que, em sã consciência, a maioria das pessoas rejeita.
O suicídio é uma dessas mensagens. O auto-assassinato é tão execrado que não é publicado, rotineiramente, nos jornais. No entanto, as pessoas se reunem para cantar e aplaudir melodias inspiradoras como "Essa noite, eu queria que o mundo acabasse e para o Inferno o Senhor me mandasse". Doutrinas de cunho filosófico, materialista, humanista ou espiritualista, o panteísmo, a transmigração da alma, a reencarnação - dominam as rimas e métricas dos poetas, como se partissem do autor - muitas vezes, cristão confesso e professo - apenas por ostentarem o rótulo de bem cultural. Não percebemos que nossos sentimentos e nossos talentos estão, gratuitamente e servilmente, a favor de religiões e tradições a nós impostas como bens culturais, enquanto confessamos sem questionar uma outra, de fachada, que não se coaduna com esses mesmos sentimentos e expressões e no fim das contas percebemos, perplexos, que nenhuma delas nos trouxe a resposta interior que tanto buscamos.
A obra literária se empenha em cultuar a forma e a linguagem - se é soneto, se é moderno, se a rima é preciosa. Poderia ser valorizado também o conteúdo - se é útil, se é edificante, se acrescenta ou se destrói, se confirma ou contradiz os valores que professamos e cultivamos. Não que faça auto-censura. Mas, no mínimo, que o escritor e poeta faça auto-crítica e julgue a si mesmo - para não ser julgado pelos outros.
Os maiores desequilíbrios de conteúdo se observam por falta ou desuso de um mero e prosaico dicionário. O artífice dos pensamentos precisa conhecer bem as palavras, que são o seu instrumento de trabalho, para usá-las adequadamente. Os equívocos, nesta área, são evidentes demais e nem os amigos nos corrigem. Por exemplo, Amor, Amizade, Paixão, Desejo, Apego - são palavras diferentes que expressam sentimentos diferentes e que são utilizadas a esmo, apenas pela conveniência da rima. Misturar o sentido das palavras não é bom porque deixa a mensagem confusa e equivocada, trazendo perturbação em vez da higiene mental e nutrição intelectual que se pretende.

Exercícios de Expressividade Literária em Cinco Linhas

Exercícios de Expressividade Literária em Cinco Linhas

Exercício nº 1
Conversa Particular

Virei-me de lado, tentando passar despercebida, ao reconhecer a voz de Vânia, que parecia discutir com alguém. Falava muito alto e acelerado, a 300 pp/m (palavras por minuto) e beirava os 120 decibéis. A outra pessoa apenas respondia com sussurros. Não pude ouvir o que dizia, mas entendi que não estavam brigando. Estavam apenas decidindo qual filme retirar na locadora. Achei bonita e caliente a voz da segunda pessoa e decidi mudar meu modo de conversar.
Exercício nº 2
Criança sabe das coisas

Ouvimos um ladrar furioso, gritos de criança, portões batendo. O pequeno Pedro entrou na sala como um raio, esbaforido, suando, gesticulando. A mãe continuou a conversa como se o menino não estivesse ali. Eu o acalmei, expliquei que a porta estava trancada e os cachorros não podiam entrar. Enquanto a mãe chamava-me de maluca por conversar com um menino que não sabia falar, o pequeno sacudia a cabeça afirmativamente e sorria, aliviado.
Exercício nº 3
Sentimento de Caim

Se eu odiasse tanto uma pessoa a ponto de querer matá-la, eu a riscaria dos meus contatos, da minha agenda e da minha vida. Investiria no meu crescimento até que ela se tornasse insignificante e minúscula. E algum dia, na minha nova posição, ela iria precisar de mim, eu a atenderia e ela descobriria o quanto se enganou a meu respeito. Então, cairia no próprio conceito e morreria de vergonha. Mas, espero não chegar a esse ponto. Espero que meu sucesso na vida tenha objetivo mais nobre.
Exercício nº 4
Para que servem as placas

No Anexo do Palácio do Buriti, o entregador de pizza apertava o botão do 15º andar. Ele não leu nas placas e, dos quatro elevadores, escolhera justamente o C, que só vai até o 9º. Decepcionado, resolveu enfrentar os seis andares restantes, pela escada, imaginando como era dura a vida para os servidores lotados naquele prédio.

Exercício nº 5
Interesse pela política
Muitas pessoas competentes e honestas se desinteressam pela política, achando que a atividade é corrupta, em si. Mas, já que tudo que a gente tem e faz é decidido pelos políticos, todos ganharíamos mais participando do que deixando rolar. Porque, no fim das contas, diminui o espaço para os espertos e evita que se tornem maioria e dividam o bolo entre si somente.
Exercício nº 6
O lado humorístico de Horácio (Hamlet, de Shakspeare)
-"Eu não disse? Eu não disse? Eu disse! Eu disse!" O personagem de Hamlet, de Shakspeare, teria todo o direito de se vangloriar de saber o fim das coisas antes do início delas. -"Isso não vai dar certo", avisa ao rei, inutilmente. Ele repete tolas superstições para nivelar-se à cultura local e ao caráter do ouvinte, no entanto, sabe onde põe os pés. No ato final, como era de se esperar, Horácio manda expor os cadáveres à contemplação pública, enquanto narra sua versão dos fatos.